Investigação de histórico imobiliário requer análise de contratos sem registro e fatos possessórios

Por Rafael Berzotti, advogado especialista em direito empresarial da Andersen Ballão Advocacia

A compra de imóveis de grande valor ou o seu uso como garantia de dívidas exigem uma análise profunda da documentação dos imóveis para a segurança jurídica dos negócios. Essa investigação é ainda mais necessária se tivermos em conta o teor da Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estabelece o cabimento de embargos de terceiro com fundamento em posse advinda de compromisso não registrado de compra e venda de imóvel.

Em due diligences imobiliárias, os credores e compradores têm por costume analisar apenas as matrículas dos imóveis. No entanto, por vezes, isso não basta. Isso porque a admissão de embargos de terceiro com fundamento em posse advinda de contratos não registrados retira muito da segurança que se deveria esperar de um sistema imobiliário registral, isto é, das certidões de matrículas de imóveis.

Contratos não registrados, é claro, não aparecem nas certidões de matrícula. Daí por que, em certos negócios imobiliários, sobretudo naqueles de grande valor, faz-se necessária a busca de certidões de escrituras públicas em tabelionatos e de contratos particulares de compra e venda, que, algumas vezes – mas não necessariamente – são submetidos a cartórios de títulos e documentos.

A doutrina dos direitos reais discute com bastante vigor a natureza do sistema imobiliário no Brasil, definindo o alcance de conceitos como “título” e “modo” e discutindo se o sistema é estritamente registral, misto etc. Entretanto, não é necessário descer a esse tipo de minúcia para se concluir que a Súmula 84 do STJ onera compradores e credores com a investigação de contratos não registrados e posse, enfraquecendo, de certa maneira, a regra do artigo 1.245 do Código Civil, segundo a qual a propriedade de imóveis entre vivos se transfere somente com registro.

A desconstituição judicial de penhoras e outras faculdades de crédito sobre imóveis com base apenas na posse faz com que a certidão de matrícula seja apenas um dos elementos que devem ser consultados nas due diligences imobiliárias. Ainda que a certidão de matrícula esteja ‘limpa’, possíveis compradores dos imóveis e credores dos donos dos imóveis podem-se ver surpreendidos com ações judiciais de possuidores ou ‘sedizentes’ possuidores, a pedir a invalidade da compra ou de atos vinculados ao direito de crédito, como penhoras e arrestos. E se os advogados desses possíveis compradores e credores não prestarem atenção ao princípio da causalidade – segundo o qual o causador da ação judicial é quem sucumbe –, pode ser até mesmo que, nos embargos de terceiro, esses compradores e credores acabem condenados em sucumbência.

Até mesmo a investigação de fatos possessórios pode ser necessária. Entrevistas com vizinhos, buscas de informações sobre o recolhimento dos impostos de propriedade imobiliária (IPTU e ITR), checagem visual das confrontações, tudo isso pode reduzir os riscos dos negócios imobiliários.

Mas não só. As cláusulas de “declarações e garantias” também podem mitigar o problema. “Cláusulas por meio das quais vendedores e tomadores de crédito – aqueles que oferecem imóveis em garantia de obrigações de crédito – declarem, sob pena de multa compatível com a dimensão do contrato, que não transferiram a posse dos imóveis negociados a terceiros são, sem dúvida, instrumentos importantes para alinhar os incentivos (mal) colocados pela Súmula 84 do STJ.

Nesse caso, os riscos postos por essa Súmula para compradores e mutuantes se converteriam em risco de crédito, ou seja, bastaria ao comprador do imóvel ou ao fornecedor do crédito conhecerem a capacidade de o vendedor ou o tomador de crédito arcar com a multa, o que então reduziria a necessidade da investigação possessória. Se surgir a discussão possessória, o contrato se resolve por inadimplemento e o vendedor ou tomador do crédito ainda terão de ressarcir o comprador ou fornecedor do crédito pela inverdade da declaração prestada no contrato.

Iniciativas como a da Súmula 84 do STJ, que visam a proteger possuidores de boa-fé são, sim, bem-vindas. O problema da Súmula 84 do STJ é que, por enfraquecer o sistema de registros, parece incentivar justamente o contrário: possuidores que não estão de boa-fé podem vir a embargar negócios imobiliários. Um credor que queira penhorar um imóvel não tem como saber se um contrato particular não registrado de fato existiu ou não.

Do ponto de vista econômico, um sistema de registros destina-se a reduzir o número de diligências prévias às trocas de bens, isto é, reduzir os “custos de transação”. Quanto mais dificuldades recaiam sobre as trocas, menores as possibilidades de as pessoas expressarem as suas preferências nos mercados e, portanto, menos eficiência alocativa.

É, portanto, questionável o Projeto de Lei 1808/22, de iniciativa do deputado Rubens Pereira Júnior, do PT-MA, que busca colocar no Código de Processo Civil o teor da Súmula 84 do STJ, conferindo a essa Súmula força de lei. O ideal parece ser justamente o contrário: obrigar as pessoas a registrar os seus negócios imobiliários o quanto antes. Tudo deveria estar registrado. O melhor seria que as certidões de matrícula, sim, refletissem o senso comum das pessoas: as matrículas deveriam ser retratos fiéis da vida dos imóveis.